15 setembro, 2016

Entrevista com Flávio R. Kothe - Autor de: O MURO

É professor titular de Estética na Universidade de Brasília. Licenciado em Letras, é mestre, doutor e livre-docente em Teoria Literária e Literatura Comparada. Recebeu o prêmio do Instituto Nacional do Livro pela tradução de Paul Celan, o prêmio Tiokô pela tradução de O Perfume de Patrick Süsskind e o prêmio OK pelo ensaio O cânone colonial. Ele é autor de 40 livros de ensaios, poesia, ficção e tradução, tem ainda outros 350 textos publicados. Traduziu obras de Franz Kafka, Heinrich Mann, Paul Celan, Karl Marx, Theodor Adorno, Walter Benjamin, Friedrich Nietzsche, Hoelderlin e Patrick Süsskind.
Como professor titular visitante na Universidade de Rostock, de 1988 até o fim de 1991, ele vivenciou os últimos meses da República Democrática Alemã, a Perestróica, a Virada (Wende), a Queda do Muro e a Reunificação Alemã, que são temas desse romance, assim como a vivência das ditaduras militares na América Latina, o exílio de perseguidos políticos, a emigração e a adaptação de refugiados a novas culturas. O que ocorreu na Alemanha em 1989 foi o fato histórico decisivo que encerrou o século XX. Não foi um evento apenas local. Esse romance histórico foi escrito naquela época desde dentro, esperou mais de 25 anos para que a experiência então vivenciada e o embate político em curso pudessem ser decantados no que continham de permanente.

Esse romance não trata apenas do Muro que dividia a Alemanha, mas dos muros que separam pessoas, povos, culturas, sonhos. Da situação do exilado e do emigrante, surgem personagens pelos quais fluem as forças históricas para perguntar: qual deve ser a relação entre ética, modo de produção e regime de governo?
As vivências na Europa são comparadas com as dos emigrantes alemães e dos exilados da América Latina. Qual é o valor do “ideal”, da “utopia” nessa busca de caminhos? Qual é o ser humano que se quer? O que é liberdade? Há crenças religiosas nos credos políticos? Qual é a validade da crença?
No embate entre capitalismo e socialismo, há contradições que nenhum resolve. Não havendo verdade absoluta, inventam-se razões para viver e caminhos. O protagonista tem, como descendente de imigrantes, uma distância crítica em relação à América Latina e, como descendente de emigrados, uma distância crítica ao que se passa na Europa. Isso gera tensões para os dois lados. A tradição literária, política e filosófica é retrabalhada em plano elevado. 
Trata-se do testemunho de uma geração, um romance histórico e de ideias, o legado de uma geração. Entre o publicado que não vale a pena ser lido e o que seria importante dizer e não pode ser dito publicamente, essa obra rompe o silêncio e constrói uma ponte. Sem equivalente no panorama editorial hoje, se não for descoberta, pior para ela, pior para o futuro.

Olá Flávio. É um prazer contar com a sua participação no Blog Divulgando Livros e Autores da Scortecci do Portal do Escritor.

Do que trata o seu Livro? Como surgiu a ideia de escrevê-lo e qual o público que se destina sua obra?
O Muro é um romance histórico sobre a Queda do Muro, fato que eu vivenciei desde dentro, pois fui professor catedrático visitante na Universidade de Rostock de 1988 a 1992. Quando cheguei lá no início de 1988, um colega me prenunciou que eu vivenciaria em breve eventos marcantes e que eu, como descendente de alemães e com vivência dos dois lados da Alemanha, poderia registrar fatos muito interessantes. Eu segui o conselho e fui anotando episódios, mesmo aparentemente menores, que me eram sintomáticos da época e da ruptura histórica em curso. Desde jovem eu tivera preocupação com o embate entre capitalismo e socialismo, a questão da imigração alemã no Brasil e da emigração forçada pela ditadura militar no país. O único leitor desse romance quando o escrevi, por volta de 1990, foi Jorge Amado, que estava em Paris: ele queria publicá-lo, mas não foi possível então. Quando voltei, perdemos contato. Eu preferi guardar o texto por 25 anos, até que no ano passado, 2015, resolvi revê-lo. Não alterei a estrutura da obra, mas mexi em muitos detalhes estilísticos. O público da obra precisa ser esclarecido e politizado, com boa cultura humanística.

Fale de você e de seus projetos no mundo das letras. É o primeiro livro de muitos ou apenas o sonho realizado de plantar uma árvore, ter um filho e escrever um Livro?
Se fosse questão de plantar árvore ou ter filho, eu não precisaria mais ter escrito esse livro. Não é sequer um sonho, e sim uma necessidade interior. Tenho uns 400 trabalhos publicados, dos quais mais de 40 são livros. Já vi vários filhos livrescos serem mortos, difícil esperar que filhos sintam orgulho dos pais. Embora esse romance possa ser o documento de uma geração, sonhar em deixar um legado genético ou espiritual é uma ilusão míope diante dos espaços siderais. Eu não espero salvação de nossa sociedade. O livro tem de ser melhor que a média dela, mas isso o condena à exclusão. O “dáimon” que nos toma obriga a escrever, assim como leva outros a pintar, filosofar ou esculpir, é um tirano que exige ser servido para nos livrar-nos dele. Não é opção nem vaidade. A obra se obra através do autor, ela se escreve por meio dele para ter autonomia e ir além dele. Quando publicada, sai da proteção do autor, fica abandonada ao mundo. Mesmo que o público não perceba e a muitos ele seja indiferente ou incômodo, esse romance talvez seja uma grande obra. Uma editora alemã já fez contrato comigo para publicá-lo na Alemanha, um sinal de valorização de uma perspectiva externa, a dos excluídos. Temos de dar conhecimento de que existe uma obra como essa, que pode ser significativa. Temas atuais como a corrupção na política, a questão dos refugiados, a degradação moral e os choques raciais estão presentes nessa obra desde sua redação em 1990. É uma tragédia em forma de romance, sem as promessas de políticos e párocos.

O que você acha da vida de escritor em um Brasil com poucos leitores e onde a leitura é pouco valorizada?
Durante a ditadura militar, quando fui excluído do ensino, tive de sobreviver da pena. Penei por isso: quinze horas de trabalho por dia, inclusive sábados e domingos. Devo muito a pessoas como Fábio Lucas, Florestan Fernandes e José Américo Motta Pessanha, que me ajudaram a sobreviver, até que por volta de 1984/85 coleções como Os Pensadores, Os Economistas e Grandes Cientistas Sociais foram fechadas, parece que por pressões externas, de cima. Não se queria que um pensamento mais crítico sobrevivesse, mas, ao excluir professores das universidades, a ditadura forçou-os a procurar novos caminhos, como essas coleções, que talvez tenham feito mais pelo pensamento teórico do que a sala de aula. Sou um sobrevivente, que logo vai acabar. Fica um legado, que pode ser ignorado. Já pass ei fome para poder estudar, mas não me orgulho disso. Livros são uma necessidade tão básica quanto alimento para o corpo, mas sem atender o plano material não há o que se sustente no espiritual. A pobreza mental reflete a pobreza material, mas a riqueza material não redunda logo em riqueza mental: uma questão de prioridades.

Como você ficou sabendo e chegou até a Scortecci Editora?
Durante a ditadura militar, quando fui excluído do ensino, tive de sobreviver da pena. Penei por isso: quinze horas de trabalho por dia, inclusive sábados e domingos. Devo muito a pessoas como Fábio Lucas, Florestan Fernandes e José Américo Motta Pessanha, que me ajudaram a sobreviver, até que por volta de 1984/85 coleções como Os Pensadores, Os Economistas e Grandes Cientistas Sociais foram fechadas, parece que por pressões externas, de cima. Não se queria que um pensamento mais crítico sobrevivesse, mas, ao excluir professores das universidades, a ditadura forçou-os a procurar novos caminhos, como essas coleções, que talvez tenham feito mais pelo pensamento teórico do que a sala de aula. Sou um sobrevivente, que logo vai acabar. Fica um legado, que pode ser ignorado. Já passei fome para poder estudar, mas não me orgulho disso. Livros são uma necessidade tão básica quanto alimento para o corpo, mas sem atender o plano material não há o que se sustente no espiritual. A pobreza mental reflete a pobreza material, mas a riqueza material não redunda logo em riqueza mental: uma questão de prioridades.

O seu livro merece ser lido? Por quê? Alguma mensagem especial para seus leitores?
Quem o leu disse que é o depoimento crucial de uma geração. Acho que deveria ser mais que isso: vida pulsando numa forma bem elaborada. Merece leitura, mas não o defendo por mim: quem tem a ganhar é o leitor. O Muro pode até ser das melhores obras publicadas no Brasil ultimamente, isso não lhe garante público. O horizonte do best-seller é limitado, o público quer isso. Só vale a pena, porém, dizer o que vai além do blablablá cotidiano. O que se pode ler com leitura dinâmica não merece ser lido. Nem tudo o que pensamos pode ser dito publicamente. Quanto maior o público, maior o controle potencial sobre o que é dito, maiores as reações. A literatura pode ser um espaço para refletir e sugerir o que em espaços com mais público não se pode. Dizer a verdade pode ajudar a quem a ouve, mas costuma criar problemas para quem a diz. A palavra se tornar mercadoria, ainda que tenda a exigir a submissão ao perfil de quem compra, tem, contudo, a liberdade de permitir o acesso a quem está disposto a trocar seu tempo de trabalho pelo do editor e do autor. O público é diversificado, tomara que isso permita dar notícia a quem possa se interessar.

Obrigado pela sua participação.

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